O livro do historiador Yuval Harari, traduzido para o português por Paulo Geiger, investiga o futuro imediato da sociedade segundo a atualidade. Seu quinto capítulo, entitulado "Os humanos têm corpos", discute as ações de Mark Zuckerberg na sua liderança do Facebook durante o cenário político conturbado dos Estados Unidos em 2016.
Harari inicia este capítulo elaborando sobre o manifesto publicado por Zuckerberg sobre a "necessidade de construir uma comunidade global", e onde o Facebook se encaixaria nessa necessidade. O criador da rede social argumenta sobre tomar a liderança na reconstrução das comunidades humanas, outrora desgastadas devido às convulsões políticas. Porém, para uma questão humana, Zuckerberg e seus engenheiros propuseram o que Harari chamou de solução técnica: a implementação de algoritmos para sugestão de grupos no Facebook. Zuckerberg chegou a declarar que "[mudaria] toda a missão do Facebook para assumir esta", procurando fortalecer o tecido social e unir o mundo, mas o historiador levanta o escândalo da Cambridge Analytica, em que foi revelado que os dados confiados ao Facebook foram comprados por terceiros para manipular eleições internacionais. O discurso é vazio se o Facebook não inclui em seu código de conduta proteger a privacidade e a segurança das comunidades existentes. A seguir, Harari comenta sobre como comunidades políticas e contatos numéricos no Facebook nunca se comparariam às comunidades mais íntimas, como um amigo ou irmão. São esses os grupos mais desgastados dos últimos dois séculos, resultando em uma solidão coletiva cada vez maior. Ressalta novamente o furo na aparente filosofia do Facebook, um negócio fundamentado em capturar a atenção das pessoas e vendê-las a anunciantes. Elogia, porém, a disposição de Zuckerberg, e argumenta que, em um mundo onde empresas abandonam todo compromisso e filosofia a favor da liberdade na aquisição de lucro, sua visão é oportuna, e deveria ser incentivada a fim de mover outras instituições a competir com o mesmo assumindo também compromissos ideológicos. Por fim, o historiador apresenta a questão do título do capítulo: "Humanos têm corpos". Comenta sobre a atenção divergida do real para o cyberespaço e que, talvez, as pessoas precisem não de ferramentas de compartilhamento de experiências, mas sim de conexão com suas próprias experiências. No cenário atual, essa conexão é prejudicada no momento em que as pessoas são incentivadas a entender o momento sob os olhos dos outros que o vêem. Harari, então, encerra o capítulo em um tom pessimista quanto ao real alcance, efetividade e sinceridade das revoluções sociais lideradas por empresas. O capítulo apresenta uma argumentação muito sólida quanto às responsabilidades com as quais empresas como o Facebook irão precisar arcar, e como podem não estar preparadas para tomar os sacrifícios necessários. Em um primeiro relance, Harari parece até esperançoso demais, elogiando a aparente mudança de intenção de Mark Zuckerberg no grande esquema das coisas. Entretanto, mesmo que isso provoque um aumento de compromisso ideológico entre empresas, os riscos são altos demais devido às próprias estruturas de mercado das mesmas. O próprio Facebook possui toda sua interface fundamentada na cultura de likes e compartilhamento, que implica necessariamente e sem possibilidade de contorno num vício, numa competição por números e, consequentemente, social. Considerando essa estrutura, não seria exagero interpretar a fala de Zuckerberg sobre os grupos do Facebook como uma romantização com interesses pessoais no momento em que utiliza o mesmo apelo psicológico do poder dos números, sob o qual ganha dinheiro, para tentar resolver um problema social. Em um possível cenário ruim, porém muito provável, as empresas apenas replicariam essas ações placebo alimentadas por interesses pessoais sob pretextos nobres. Um bom exemplo de como utilizar o poder de sua corporação para o bem social é o conceito de Empresas B, que toca na necessidade de incorporar a intenção em todo o esqueleto da empresa.
Por outro lado, enquanto inicialmente esperançoso, Harari logo afunda-se quase num pessimismo distópico com o avanço das realidades aumentadas. O perigo com o abuso e avanço desenfreado da tecnologia é real e todos temos a responsabilidade de nos atermos ao mesmo e ao descarte do quesito humano, porém, nos prendermos a um extremo pode mostrar-se equivocado. A verdade é que nunca deixaremos de ver a tecnologia sob os olhos de uma criança: é um mundo de possibilidades, que sempre apresentará a questão do "até onde podemos chegar". Como com toda criança, negligenciar a imaginação é ignorar a raiz do problema. É preciso, como Harari mesmo apontou mais cedo em seu texto, manter em consciência a importância de nossas proximidades e do contato humano, e o nosso impacto nestes. Seria oportuno observar a tecnologia e a internet sob um ponto de vista tanto histórico quanto jurídico: algumas causas apenas são trazidas à luz com a implementação de leis e mobilização, como foi o caso do cinto de segurança. A solução para as mortes por batimento de carro nunca teria sido apenas banir os carros - extremismo nunca é a solução - o cinto de segurança, porém, era muito negligenciado e banalizado. A mudança de pensamento da sociedade quanto ao mesmo somente foi acontecer quando foi implementada a lei que torna seu uso obrigatório e a mobilização sobre sua importância e os resultados positivos logo adquiriram mais visibilidade.
Apesar disso, é possível ver na obra do historiador uma consciência quanto ao impacto a diferentes públicos com seu livro. Talvez alguém na mesma posição do líder do Facebook ou encarregado de projetos empregando algoritmos, realidade aumentada, entre outros leia sua obra e, ao invés de encontrar-se na defensiva, perceba suas responsabilidades nos múltiplos cenários futuros.
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